11 novembro, 2006

CATANDO OS MITOS

Apesar de todos os resorts paradisíacos e de todos os cenários deslumbrantes das fotos que capturam e reproduzem nos monitores de computador cenas maravilhosas de fenômenos atmosféricos encantadores, é preciso não se deixar vencer pelo arrebatamento estético, que alimenta o mito de que vivemos nas regiões paradisíacas do melhor sistema solar que existe no universo. Até porque o planeta que habitamos passa também por momentos infernais durante os quais morrem milhares de pessoas e se destroem as construções onde viviam abrigados.
São coisas que ninguém ignora, ou porque as sofre/goza em tempo real, ou porque os progressos tecnológicos,hoje ao alcance de quase todos, torna possível acompanhar terremotos, enchentes, tsunamis ou magníficos crepúsculos, assistindo aos noticiários da televisão em casa, comodamente protegidos.
Mesmo sabendo e vivendo essas coexistentes discrepâncias entre o infernal e o paradisíaco, há algo em nossa mente que impede uma visão integrada do planeta. Este fator impeditivo, não é de ordem concreta, é da ordem do mito.
Mitos, todos sabem, são pensamentos, fantasias, que se criam em nossas mentes, ou aí são plantadas, por pessoas aparentemente responsáveis, e aí ganham morada prolongada ou eterna. Não precisam ser lógicos e nem coerentes. Basta que nos protejam do medo ou nos prometam uma segurança qualquer, ou um prazer.
Nosso contato com os mitos começa muito cedo, quando somos alimentados com “histórias da carochinha” (carochinha quer dizer bruxa) com que todos os adultos (pais, professores e empregadas) divertem ou atemorizam as crianças, que nada sabem da vida e são facilmente doutrinadas. Nada sabem, carecem de crítica e guardam na mente todas as tolices míticas que lhes são ensinadas pelo resto da vida. São fantasias que assustam ou gratificam, e nem quando se confrontam como a maior das realidades são facilmente recusadas. O mito da existência de deus, ou do diabo, por exemplo, resiste a todas as evidências que antagonizam a veracidade das estórias que, há aproximadamente 6.000 anos afirmam a existência destas entidades impalpáveis “que fizeram o mundo. Trata-se de uma crença, e é nela que os que crêem se protegem para não ter que suportar o medo e o peso da ignorância quanto à nossa origem, destino e razão de ser, quando elas são postas á prova num exercício que independa da fé. Todos ou quase todos trocam o espanto da vida por mitos e ritos aos quais se submetem mesmo que tudo pareça absurdo.
A maioria dos seres humanos não se conforma com a mortalidade e aposta no mito da imortalidade da alma. É esse o mito que embasa todas as religiões do mundo, das quais os sacerdotes se fizeram profissionais, criando e ensinando orações que se destinam a garantir um bom posicionamento para as almas depois da morte do corpo, como se só o corpo morresse na hora da morte. A alma, que hoje se admite ser a mente, morre junto.
Todas as rezas são ritos de adulação, escritas e repetidas no estilo da gratidão, agradecendo a deus a origem de todas as benesses da vida. Tudo que é mal resulta de um castigo nascido do mesmo deus onipotente, para punir quem, ele próprio, tido por autor de tudo, não pôde livrar da força imperiosa do mal.
Mitos antagônicos convivem sem arrepios na mente de cada um e, ao que parece, todo mundo tem medo de viver sem mitos porque a mentira mítica é melhor que a perplexidade, que resulta de nada saber sobre o que trouxe cada um a esta experiência de estar vivo neste planeta que, agora já se sabe, gira em torno do Sol, e não como rezavam os mitos do catolicismo, que se sentia autorizado a matar quem contrariasse o mitos da época.
Mitos, crendices e fantasias foram gradativamente substituídos por pensamentos lógicos, o que deu lugar ao surgimento das ideologias, mais comprometidas com a racionalidade. Ainda assim os mitos persistem e os seres humanos continuam fazendo guerras e tentando convencer por persuasão, catequese e violência, que a veracidade maior é a dos seus deuses inventados.As ideologias se antagonizam e acabam se tornando partidos de estrutura maniqueísta, que nada ficam a dever às mais antigas e retrógradas crenças. Chamam-se umas às outras de pertencentes ao eixo do mal. Se não se tem paciência de catar os mitos, eles engolem o progresso da racionalidade.
Nos tempos atuais os mitos modernos apregoam a validade maior de seus sistemas econômicos, embasados em mitos que se pretendem leis da história, baseados em teorias que se digladiam com aparente razoabilidade. Os progressos tecnológicos são visíveis, mas o conteúdo ético da existência ainda se subordina aos mesmos mitos da antiguidade, que ainda acredita na eternidade da alma, que ainda se define nas igrejas e nos salões como um sopro de deus aplicado às narinas de barro de Adão. O hábito de dizer “saúde” a quem espirra vem daí. Traduz os votos de aquele espirro não seja a perda do “ruach” (o sopro).
O progresso da humanidade talvez dependa de que se possa abrir mão dessa aparente “couraça protetora”, que é sentir-se vigiado pelos mitos da onipotência, implícita em todas as rezas de todos os credos, em todos os cumprimentos sociais e cerimônias. Meras fantasias defensivas.Um exame crítico dos conceitos: eternidade, ressurreição e milagre é algo que se impõe, tanto quanto redirecionar pastores, rabinos, padres e todos seus subordinados de quaisquer credos a uma consciência crítica do sentido visível do auto-engano contido nos mitos e nos rituais do seu culto.
Há que arrumar emprego para toda essa gente que consome a vida vendendo mitos, coordenando ritos e prometendo lugares no céu.