ANDANDO, SEM SAIR DO LUGAR...
A estes fatos de ordem policial se sobrepõem outros, de importância muito maior, por dizerem respeito ao comportamento humano, que abarca todas as latitudes e ganha visibilidade e significação.
Fica cada vez mais claro que, de um modo geral, o ser humano não sabe ou não consegue viver sem recorrer a substâncias, químicas, a mitos e a fantasias, para fazer face à fragilidade intrínseca à condição humana, desde que esta misteriosa experiência de viver nos foi imposta. Viver sem saber porque e nem para que, e sem explicação de qualquer espécie, não é nada fácil. Tudo o mais começa aí.
Os mitos religiosos foram o nosso primeiro recurso defensivo. E persiste. Neste terreno foi a fragilidade que inventou os deuses, os rituais e os templos para levar a cabo todas as adorações acompanhadas de rezas bajulatórias, disfarçadas de gratidão, com as quais os crentes querem garantir sua ressurreição noutro mundo. O importante é não morrer, nem sofrer. A moderna Síndrome de Estocolmo, recém inventada, é uma nomeação medicalizada da dinâmica do mesmo medo que se quer combater pelo recurso às religiões.
Depois vieram os mitos políticos, aos quais devemos a invenção dos sistemas de governança, expostos em múltiplas ideologias, em torno das quais surgem as guerras e as intermináveis contendas, de que se espera o surgimento de uma sociedade civilizada - algo que equivale ao paraíso prometido pelas religiões, noutro mundo.
As ideologias políticas e as religiões nem alcançam os propósitos para os quais foram criadas e nem desistem de suas promessas, porque seguem repetindo os mesmos slogans que re-alimentam as esperanças ingênuas dos que pacientemente postergam um acerto de contas com a realidade, ou dos que fizeram do maniqueísmo seu esporte preferido.
Ao fracasso dos monoteísmos soma-se agora a semi-inutilidade das democracias, no seio das quais todos os extremismos se digladiam interminavelmente, protegidos por ingênuas e ferozes nomeações de ‘direita’ e ‘esquerda’, que não passam de modernas formulações do velho maniqueísmo, onipresente e interminável.
Assim como já se disse que “as religiões são o ópio do povo”, pode-se, agora, afirmar que ”as ideologias políticas são o ópio da classe média”, especialmente dos intelectuais.
Falemos, agora, do ‘ópio’, num nível menos metafórico. A drogadição não se disfarça de utilidade social e nem pretende ser um condutor divino para a paz entre os homens. Ela é uma espécie de ‘cansei’, uma busca de soluções presentificadas, dos que nem suportam esperar pela ressurreição e nem pela extinção das desigualdades sociais. É uma solução química, de duração limitada, diretamente proporcional à dose ingerida. Não passa de um passeio hedonístico pelos caminhos mentais da onipotência, de fácil acesso, a que recorrem e aderem os que não suportam a fragilidade humana e não podem esperar pelo cumprimento das realizações onipotentes dos deuses.
A drogadição é uma forma do politeísmo, comporta muitos ‘deuses-drogas’ e se alimenta das sensações que são os chamados “baratos”, específicos para cada substância ingerida, fornecida pelos sacerdotes (narcotraficantes) de um credo, que se escondem nos morros e se alimentam, eles próprios, da onipotência de criar estados paralelos e se atribuir o direito de matar quem não os obedece ou atrapalha seu proselitismo sui generis. As religiões, as ideologias políticas e a drogadição são, no fundo, diferentes modalidades de uma busca de onipotência a que a humanidade está entregue desde o início dos tempos, por não suportar esse encontro lúcido e necessário com a perplexidade e por confundir a educação dos filhos com um proselitismo religioso, perpetuador dos mitos.
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